“O leite só apodrece na nata”

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(*) Mauro Serra

Acenando a conta de luz numa das mãos. Na outra um copo de cachaça. Boca cheia – um torresmo gorduroso – Zequinha gritava: São Pedro é comunista! São Pedro é um comunista!

Kaká Albergaria no cangote do Zequinha que ocupava a calçada aos berros: “Bem feito! Bem feito! Essa comunistada tá nos ferros!…a chuva não veio!! Quero um drone possa ser voando para nunca mais voltar. Se sobrarem da faca do vírus, da faca da fome não escapam. Esse lá é dirigido por um piloto mais bêbado do que eu, num caminhão morro abaixo, sem freio, despingolado sem volante! ”. E ria que só um gambá!

A coitada descia do ônibus – um chassi de caminhão caco velho montado precariamente para servir de transporte para os indos e vindos do corte de cana. O único emprego disponível por essas bandas e épocas de junho a dezembro é no doce amargo do corte da cana-deaçúcar. Coberta de fuligem Mariquita das Dores do Parto Alheio, moça viçosa, bonitona de dar inveja a filha única de Dona Pina chegou chegando. Muito cansada. A fumaça rançosa dos cabelos da moça rescendia longe.

Mariquita ficou órfã de mãe. Covid -19. Pai nunca soube, no registro não. Disseram de um tal que nunca deu o ar da graça. Restou o vizinho Zequinha, não um caso de amor, de necessidade na condição de mulher sozinha jogada naquele alto de morro, presa fácil de uma desgraça maior. A miséria e suas muitas faces. A miséria não é só dinheiro em falta, a miséria é a escola propositada que não ensina pensar, é o médico que nunca se viu, a miséria fosse só a fome seria consertável. A miséria é muito mais perigosa às mulheres desacompanhadas de um homem, completava o falecido tio Toinho. Mariquita desgosta o Zequinha com “essas conversas bobas de política”. Mariquita percebe o prejuízo dentro de casa, não só as desavenças por causa da cachaçada do esposo, as latas de mantimentos vazias, desempregado ele acaba de perder uma viagem “maravilhosa” para Brasília em comemoração ao 7 de Setembro. Tudo pago, até com direito a levar a companheira, reclamava a boia-fria.

O ex-patrão do Zequinha quer encher um ônibus com os empregados, “não desses ônibus cacarecos de carregar “esfomeados” do canavial, mas um ônibus de luxo, turbinado, molas coloidais, eixo de torção, todo acolchoado, pintado com ramos de canade-açúcar em verde e amarelo, frigobar, ar refrigerado. E com direito a pão com ovo e queijo, durante o trajeto de mais de 12 horas de viagem. Roupa nova. Coisa de rico. Ônibus com banheiro, televisão, ponto para carregar celular. Não é essas coisas de gente jogada, coisa enfumaçada de levar gente pros matos da cana não”, diz ela.

Ressentida com o marido Mariquita pensa em divórcio. “Como perder uma viagem dessas em pleno feriado de 7 de setembro, dia de aniversário do radialista, jornalista, escritor Ricardo Motta e do menino Luiz Afonso, pior, quando nunca saiu do mato nem conhece a cidade vizinha”, diz ela, “perdendo uma oportunidade de ouro!”

E o velho Astrogildo esquecendo-se da falta de homogeneidade da classe média frisa a filósofa Marilena Chaui: “A classe média é uma abominação política, porque é fascista; é uma abominação ética, porque é violenta; e é uma abominação cognitiva, porque é ignorante. Fim”

(*) Mauro Serra é advogado e contador e escreve na 1ª semana de cada mês.

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