Especialistas e movimentos questionam sobre falta de detalhes do documento e apresentam alternativas de discussões para o retorno às aulas.
O Ministério da Educação (MEC) lançou, no dia 1º de julho, o Protocolo de Biossegurança para o retorno das atividades nas Instituições Federais de Ensino. Em sua justificativa, o documento é apresentado como orientativo a gestores como instrumento de apoio na tomada de decisão, objetivando o retorno gradual das atividades presenciais, com manutenção de um ambiente seguro e saudável para alunos, servidores e colaboradores. No entanto, gestores e movimentos ligados à educação têm apontado que faltam, no documento, informações sobre como realizar as ações indicadas, além de um horizonte de financiamento que permita colocar em práticas as medidas sugeridas, que requerem uma maior estrutura de espaço e de material a ser disponibilizado. Há queixas, ainda, sobre a falta de participação de entidades da sociedade civil na construção do texto.
Para a coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, um dos problemas é o de origem. O documento foi construído com alguns técnicos, como o próprio texto indica, sem participação de gestores e conselhos estaduais e municipais, profissionais da educação e estudantes. “É uma lista de recomendações totalmente descoladas da realidade de aplicação e com isenção do Estado acerca de como implementar – fica, novamente, tudo nas costas dos responsáveis pelas instituições de ensino superior e dos próprios sujeitos de direito. É um completo descaso e irresponsabilidade”, avalia.
Andressa destaca ainda a questão do financiamento para seguir o protocolo de segurança. Em nenhum lugar do texto há uma perspectiva de mais recursos para o cumprimento. “Há uma preocupação imensa sobre com qual financiamento se garantirá que qualquer protocolo de segurança sanitária seja cumprido, sendo que temos milhares de instituições de ensino que sequer saneamento ou água têm, que têm turmas superlotadas e com poucos funcionários e sem formação para a demanda não só de orientações para o cumprimento das diretrizes como também para a limpeza e aplicação destas. Se não temos sequer EPIs [equipamentos de proteção individual] suficientes nos hospitais, quem dirá para as instituições de ensino. Em várias instituições, não há políticas de transporte adequadas, que são superlotados etc.”, exemplifica.
Silvio Valle, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e especialista em biossegurança considera importante a elaboração de um protocolo e defende que, com essa iniciativa, o MEC sinaliza para as instituições um documento básico de implantação dos processos mitigatórios contra a Covid-19. No entanto, ele indica que a redação precisaria enfatizar de forma mais contundente e detalhada, por exemplo, que cada unidade deve criar uma comissão de retornos às atividades institucionais com a participação de toda comunidade escolar e seus próprios manuais de biossegurança. “É de fundamental importância, do ponto de vista da biossegurança, que cada instituição elabore o seu próprio manual, com suas especificidades socioculturais, incorporando as questões de saúde mental, elaborando o procedimento operacional padrão (POP) para cada atividade específica, além de um mapa de risco do SARS-Cov-2 das instalações”, aponta e completa: “Além disso, é preciso criar indicadores para avaliação permanente do protocolo e definir prazos para sua implantação. Ao fazer a previsão do retorno das atividades, é preciso prever a possibilidade de que, devido às condições epidemiológicas, poderá ocorrer a necessidade de retorno ao distanciamento social, considerando que estamos diante de uma doença nova e que o conhecimento científico tem avançado quase que diariamente”.
Questões divergentes
Para a coordenadora geral do ensino técnico em saúde da EPSJV/Fiocruz, Ingrid D’ávilla, ficaram sem esclarecimento questões que passam pelo caráter pedagógico, de estrutura, financiamento e até científico. “A gente tem a expectativa de que o Ministério da Educação não concentre apenas uma lista de ações relativas à conduta de higiene ou mesmo de biossegurança. O que esperamos é que ele regulamente as práticas de biossegurança nas instituições escolares levando em consideração a complexidade delas. A forma como esse protocolo foi divulgado se refere a condutas que deveriam ser adotadas pelas escolas, mas sem nenhum comprometimento sob o ponto de vista estrutural desses espaços”, reflete e completa: “A gente vive no Brasil naturalizando que as escolas têm péssimas condições. Talvez seja o momento, a oportunidade de olhar para esses protocolos e pensar como esses espaços não têm sido capazes de promover saúde e condições laborais adequadas. E que talvez, a partir da urgência de implantar essas medidas, a gente venha a disponibilizar condições adequadas para o funcionamento das escolas públicas. Não é abrir mão dos protocolos, mas encará-los como um processo de reestruturação e, quem sabe, melhoria das escolas públicas”, defende Ingrid.
Entre as questões que geraram dúvidas, inclusive relativas à própria área de biossegurança, estão a proposição de distanciamento de, pelo menos, um metro e meio entre as pessoas e o uso de bebedouros. Para Silvio Valle, sob a ótica da biossegurança, esses pontos deveriam seguir as normas já estabelecidas pela comunidade científica como, por exemplo, o distanciamento físico, que tem sido indicado entre um a dois metros. “Não pode simplesmente determinar um metro e meio como algo fixo, a variação desta medida de distância leva em consideração outros fatores como ventilação, espaço disponível, entre outras coisas. Outro item que tem que deixar mais claro é atrelar essa distância à obrigatoriedade de utilização de máscaras não cirúrgicas”, completa. Segundo o documento, o uso do bebedouro deve ser atrelado à higienização individual com papel toalha. Silvio Valle discorda “Sugerimos na primeira fase a interdição ou adequação de uso dos bebedouros de acionamento manual, considerando sua utilização não ser possível o uso de máscara facial”, diz, reconhecendo, no entanto, que a nota técnica nº 101/2020 da Agência Vigilância Sanitária (Anvisa), publicada para orientar a circulação em portos e aeroportos, não faz restrições ao uso desses equipamentos.
O documento propõe ainda o escalonamento do uso de restaurantes e refeitórios. Na avaliação do pesquisador, a utilização desses espaços precisa estar bem detalhada devido ao grande risco de contágio. “Os restaurantes e praças de alimentação são considerados áreas críticas devido ao consumo de alimentos ser feito sem máscaras e pela elevada possibilidade de contato social, por isso há a necessidade de um detalhamento minucioso a ser discutido a partir de cada realidade”, avalia. Outras indicações que Valle considera de extrema relevância para o espaço escolar, e que constam no protocolo do MEC, são a aferição da temperatura em áreas comuns, entradas de diferentes salas e laboratórios, mas, segundo ele, falta o estabelecimento de um protocolo de encaminhamento de pessoas febris, além da restição de aparelhos de ar-condicionado nem nas salas de aula nem no transporte escolar, quando possível.
Para Ingrid D’ávilla, caberia ao governo federal também apresentar um conteúdo mais amplo e detalhado e não um conjunto de medidas a serem tomadas. “Não esperávamos um protocolo que diz ‘cumpra-se’. Este documento deveria trazer um caráter informativo e até mesmo abordar pedagogicamente a questão. É importante ressaltar que é de extrema relevância a existência de um protocolo, mas este deve ser realizado de forma coletiva e levando em consideração múltiplos fatores”, adverte.
Entre esse fatores, Ingrid aponta o monitoramento epidemiológico da Covid-19, que pode ser acompanhado pelo sistema MonitoraCovid-19 . “Apesar da insuficiência de testes e da subnotificação de casos, é possível avaliar tendências de evolução de casos e óbitos. Três perguntas são essenciais nas análises sobre a situação epidemiológica local: 1) a Covid-19 está controlada no território? 2) o sistema de saúde tem condições de responder ao aumento de casos? 3) O sistema de vigilância em saúde pode identificar a maioria dos casos e os seus contatos?”, indaga. Ela indica ainda a nota técnica produzida pelo grupo de trabalho sobre distanciamento social no âmbito do Observatório Covid-19 Fiocruz, divulgada no dia 28 de maio de 2020. “ A nota apresenta indicadores que podem ser analisados para a tomada de decisão sobre a flexibilização do isolamento social e, posteriormente, a abertura de escolas”, exemplifica.
Para esclarecer as questões, a reportagem entrou o contato com o Ministério da Educação, via assessoria de imprensa, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.
Outras propostas sobre retorno às aulas
Como uma forma de coletânea de múltiplas vozes e interpretações sobre o retorno às aulas, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação desenvolveu o Guia 8 – Reabertura das Escolas, que traz experiências e recomendações internacionais e de entidades nacionais sobre como esse processo deve ocorrer. Estão lá registradas orientações de entidades como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), além de proposições em pauta no Congresso Nacional. Ao final, o documento apresenta uma nota técnica e 20 recomendações e orientações produzidas a partir da análise dessas experiências.
Andressa Pellanda, da Campanha, avalia que esse é um processo que requer cautela e ressalta a importância de se debater de forma coletiva. “É importante ouvir e dar voz aos atores e sujeitos da educação. É sempre nessa perspectiva que trabalhamos. Assim, fizemos esse guia que sistematiza as principais preocupações e diagnósticos das diversas entidades representativas em nível nacional, assim como de suas orientações. A partir dessa análise, e considerando os princípios da Campanha, de atuação por uma educação pública, gratuita, de qualidade social universal e contrária a quaisquer discriminações, dialogando com as áreas da saúde e da assistência, em uma agenda intersetorial, elaboramos uma lista de 20 recomendações, que incluem todos os sujeitos de direito. O que se destaca é justamente a necessidade de a reabertura das escolas ser um processo muito bem pensado, com a participação de toda a comunidade escolar, a partir de uma avaliação precisa das distorções educacionais geradas pela própria política implementada em cada local nesse período de pandemia, com vias de corrigir rumos. E que cada localidade deve realizar seu próprio protocolo de retorno às atividades presenciais. Para isso, é necessário que tenhamos recursos financeiros alocados. E para que isso se efetive, é preciso colaboração federativa e mais recursos do governo federal”, defende.
Entre os projetos em destaque no documento estão três Projetos de Lei em tramitação. Um deles é o PL 2949/2020, do deputado Idilvan Alencar (PDT-CE), que aponta a necessidade de criação de comissões nacional, local e escolar para debater o retorno. Outro é o PL 3165/2020, suprapartidário, que estabelece ações emergenciais destinadas à educação básica pública, além de repasse de R$ 31 bilhões da união aos estados e municípios para executá-las. Por fim, o PL 3377/2020, do deputado Sérgio Vidigal (PDT-ES), torna obrigatória a testagem periódica de professores e profissionais de escolas públicas e privadas para detecção da Covid-19.
Entre as entidades que lançaram diretrizes para o retorno às aulas está também a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), que propõe o retorno escalonado, com testes periódicos e número reduzido de estudantes por turma, medidas que também constam no protocolo do MEC, além de uma série de medidas de proteção dos trabalhadores.
Apesar de o documento do MEC tratar apenas de institutos federais, tanto o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) quanto a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) lançaram também seus documentos, denominados, respectivamente, ‘Diretrizes para protocolo de retorno às aulas presenciais’ e ‘Subsídios para a Elaboração de Protocolos de Retorno às Aulas na Perspectiva das Redes Municipais de Educação e à educação de todas as crianças, estudantes, profissionais e trabalhadores em educação’. Ambos enfatizam a importância de conselhos multissetoriais para planejar o retorno, medidas de segurança sanitária, escalonamento de aulas com base em dados epidemiológicos. A União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme) elaborou também o documento ‘Educação em tempos de pandemia: direitos, normatização e controle social – Um guia para Conselheiros Municipais de Educação’. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), em sua nota de alerta ‘Covid-19 e a volta às aulas’, recomenda que o retorno seja feito de forma gradual, cautelosa, e incluindo todas as precauções necessárias para minimizar a disseminação do vírus nas escolas. O Movimento Interfóruns de Educação Infantil braisleiro(Mieib) divulgou o material de orientação ‘Para um retorno à escola e à creche que respeite os direitos fundamentais de crianças, famílias e educadores’ que traz um conjunto de recomendações referentes aos direitos humanos das crianças, famílias, professoras, educadores e funcionários que trabalham nas instituições de educação infantil.
Fonte: Viviane Tavares – EPSJV/Fiocruz